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Uma verdadeira lenda dos quadrinhos, todo aficionado em quadrinhos já ouviu falar do personagem e de seu famoso revival pelas mãos de Alan Moore (WATCHMEN, MONSTRO DO PÃNTANO), mas poucos são os sortudos que tiveram a oportunidade de ler toda a saga de Moore e sua continuação escrita por Neil Gaiman (SANDMAN).
Os autoresMoore nos anos 80, mas com cara de anos 60.
Alan Moore é um dos maiores roteiristas dos quadrinhos mundiais, mundialmente conhecido por sua releitura pós-moderna do mito do super-herói em MIRACLEMAN, BATMAN: A PIADA MORTAL e WATCHMEN. Apesar de ter um sentimento contraditório em relação às super-heróis, Moore criou várias séries relacionadas ao gênero, tais como TOM STRONG, PROMETHEA e AS AVENTURAS DA LIGA EXTRAORDINÁRIA. Claro, nenhuma delas apresenta a típica aventura de super-herói, mas personagens e narrativas bem mais interessantes e complexas, onde Moore fala de temas que lhe interessam. E quase tudo interessa a Moore. Em 1996, Moore publicou A VOZ DO FOGO, cuja narrativa é uma tentativa de emular em primeira pessoa a linguagem limitada de um homem primitivo e sua história.
John Totleben.
Em 16 edições escritas por Moore, cinco artistas deixaram sua marca em MIRACLEMAN: O limitado Chuck Beckum/Austen (X-MEN, VINGADORES), o empolgante e realista Garry Leach (JUIZ DREDD), o comercial e agradável Alan Davis (X-MEN, EXCALIBUR), o sombrio John Ridgway (HELLBLAZER) e o primoroso e original John Totleben (MONSTRO DO PÂNTANO).
Origem Criado em 1954 por Mick Anglo para substituir as aventuras do CAPITÃO MARVEL, que pararam de ser distribuídas na Inglaterra, MARVELMAN, como foi chamado na época, não passava de um plágio descarado do próprio CAPITÃO MARVEL, com origem, poderes e personagens muito similares à sua contraparte americana. E ainda com alguns detalhes retirados de Superman, como as cores da roupa, o cabelinho pega-rapaz e a profissão de seu alter-ego, Mike Moran. Em 1963 foi publicada a última aventura de MARVELMAN na Inglaterra, que na época foi publicado no Brasil com o nome JACK MARVEL.
Vinte anos depois, em 1982, Alan Moore, até então apenas conhecido por alguns trabalhos na revista 2000AD, é contratado pela Eclipse Comics para recontar a história do paladino azul. Os quadrinhos de super-heróis nunca mais seriam os mesmos...
SinopseMike Moran, um repórter freelancer de 42 anos e sem muitas perspectivas na vida, é atormentado por dores de cabeça e estranhos sonhos de voar. Mas quando vira refém de um grupo terrorista enquanto cobre uma manifestação, algo acontece e Moran descobre que seus sonhos eram bem reais. Agora, como Miracleman, personagens de seu passado misterioso surgirão das sombras e revelarão conspirações governamentais, inimigos e até mesmo alienígenas. E ele terá que tomar decisões que afetarão sua vida e a de todo ser humano no planeta.
O processoDevido a falência da ELIPSE COMICS, apenas 24 números de MIRACLEMAN foram publicados. A 25ª edição chegou a ficar pronta, mas sem colorização. Essa edição, assim como o resto do volume A ERA DE PRATA e o último, A IDADE DAS TREVAS, aguardam sinal verde da MARVEL ENTERTAINMENT - que depois de um longo e confuso processo, agora é dona dos direitos sobre o personagem - para serem produzidas. Isso ainda depende de um futuro acordo com Neil Gaiman. A boa notícia é que Gaiman já manifestou diversas vezes seu interesse em finalizar a saga de MIRACLEMAN.
Durante o demorado e complicado processo, ate Todd MacFarlane deteve o direito do personagens durante alguns anos.
Com isso espera-se também a republicação de toda a fase Moore/Gaiman, que há muitos anos só pode ser encontrada completa em inglês nas mãos de colecionadores e comics stores a preços bem salgados.
Em relação ao nome do herói, ele foi modificado do original MARVELMAN para MIRACLEMAN na fase ECLIPSE justamente por ameaça de processo pela MARVEL, que detém direitos sobre o nome. Ironicamente, com o personagem comprado pela MARVEL, ele volta a denominar-se MARVELMAN. Mas como aqui vou falar da fase ECLIPSE, vamos considerá-lo apenas como MIRACLEMAN.
A obraGeralmente evito falar dos principais eventos da narrativa para não estragar a leitura de quem ainda não teve a oportunidade de ler os gibis, mas por considerar este um dos melhores quadrinhos que já tive oportunidade de ler, pretendo fazer uma tentativa de análise minunciosa e por isso, os spoilers serão tão necessários quanto inevitáveis.
Então, procure pegar emprestado, comprar ou
achar a obra em algum lugar e depois continue lendo esse texto.
Divida em volumes publicados em capítulos, Alan Moore escreveu os três primeiros, sendo eles:
UM SONHO DE VOARO volume começa reintroduzindo uma antiga história dos anos 50 do MIRACLEMAN de Mick Anglo. Ingênua e caricatural como a maioria dos gibis de super-heróis da época, ela serve como prenúncio da grande virada que Alan Moore pretende dar ao personagem. Nesta história com narrativa quase infantil, a Gestapo Internacional, uma sociedade criminosa do “futuro de 1981” vai ao ano de 1956 para dominar o mundo. Seus planos são frustrados por Miracleman, Young Miracleman e Kid Miracleman. E pronto, agora o leitor já sabe que existia algo chamado Família Miraclamen.
Ao final, Moore homenageia essa era fazendo um gancho com o útlimo quadrinho de Anglo e anexa um trecho de ASSIM FALOU ZARATHUSTRA, de Nietszche, e pela primeira vez nos quadrinhos, as idéias do filósofo que criou o conceito do “ubermensch” (super-homem) serão usadas para dar vida e justificar um super-herói pós-moderno.
A narrativa reinicia no presente, 1982, e o traço realista e fotográfico de Garry Leach substitui o quase amador de Anglo e vemos terroristas dirigindo-se para algum lugar e Mike Moran acordando de mais um pesadelo onde ele voa... e morre.
Talvez alguns estranhem o excesso de recordatórios e balões na narrativa, e realmente eles poluem bastante as páginas, muitas vezes cobrindo o desenho de Leach. Nesse ponto, acho que Moore se excedeu em sua tentativa de colocar um tom literário na obra e a ECLIPSE errou em não publicar uma edição com mais páginas, dando assim, mais espaço para a bela arte de Leach.
Mas apesar disso, o tom literário e detalhado de Moore também é o grande trunfo de Miracleman, e assim ele garante que tanto o narrador quanto os personagens, tenham voz na trama.
E a descontrução do MIRACLEMAN de Anglo e a era do super-herói pós-moderno começa: Mike Moran relembra a palavra mágica e sua mera transformação manda um homem com sérias queimaduras para o hospital. Ele derrota os terroristas rapidamente e parte em júbilo aos céus, pois agora ele sabe quem ele é. Basicamente, nessa seqüência, a questão não é prender os vilões como nos quadrinhos convencionais, mas sim o resgate da memória e a explosão de júbilo de Mike Moran diante da descoberta do seu outro eu, Miracleman.
E a partir daí a crise de identidade do homem/super-homem tem início.
Miracleman voa para seu apartamento onde encontra sua esposa Liz, que não compreende como seu marido parece 10 anos mais jovem e com mais de 2 metros de altura. Sua incredulidade é levada aos limites quando Miracleman lhe conta de suas antigas aventuras nos anos 50 e 60 contra monstros, super-vilões e alienígenas. E da bomba nuclear que foi usada para tentar matar ele, Jovem Miracleman e Kid Miracleman. O fato é que sua esposa lembra-lhe que não existe nenhum registro oficial em qualquer mídia de super-heróis ou qualquer coisa do tipo. Afinal, esse é o mundo real. E super-heróis e monstros não existem.
A trama se intensifica e mantém seu ritmo acelerado, revelando que Johnny Bates, o Kid Miracleman, também sobreviveu a bomba nuclear que deveria ter matado a família Miracleman. Um homem adulto agora, Bates é o dono de uma grande indústria. Mas durante o encontro, Moran e Liz percebem que ao contrário de Moran, que permaneceu preso em sua forma humana durante 20 anos, Bates jamais reverteu para seu lado humano e sendo a criança mais poderosa da Terra livre de qualquer controle adulto, ele percebeu que poderia fazer o que quisesse sem se importar com as conseqüências ou punições. E sem remorso. O ubermensch de Nietzsche, em sua versão piscopata.
Após uma violenta batalha terrestre e aérea que influenciaria em muito a batalha final entre Neo e o Agente Smith em MATRIX REVOLUTIONS, Bates diz a palavra mágica e reverte ao seu corpo e mente infantil, traumatizado com as atrocidades que seu alter ego fez ao longo dos anos. Moore, aqui, faz Miracleman apiedar-se do menino e o faz poupá-lo. Mas o deixa entregue a própria sorte... Uma criança orfã de 1963 largada a sua própria sorte no ano de 1982.
E entra o ilustrador Alan Davis, que apesar de ser bastante competente, acaba com a força e o realismo de Leach, bem mais em sintonia com a trama.
Mas como dizia antes, esse é o mundo real e apesar do confronto entre Bates e Miracleman ter causado pouca destruição, ele tem testemunhas e imediatamente as autoridades britânicas são informadas até chegar a Dennis Archer, um homem idoso que diz: “Oh, Deus. Eles voltaram. Os monstros voltaram.”
O Sr. Cream, um agente secreto do governo britânico é chamado para encontrar e matar os “monstros” em sua forma humana.
Enquanto isso, Moore aproveita para fazer um pequeno estudo pós-moderno dos poderes dos super-heróis aplicando as leis da Física ao colocar Liz e Miracleman testando seus poderes em campo aberto com uma pilha de gibis ao lado para termos de comparação. Piadinhas com supersopro e o tamanho dos músculos necessários para erguer grandes pesos detonam com a “lógica” dos gibis. E a seqüência acaba com a bombástica notícia de que Liz está grávida de Miracleman e não de Mike.
A crise entre o homem e o super-homem se acentua, pois Mike percebe que quando é Miracleman, não apenas seu corpo, mas sua mente e suas emoções são muito superiores às de quando é humano. Ele começa a perceber-se como uma entidade separada de seu super-alter ego e isso começa a resultar em sentimentos de inferioridade e baixa autoestima.
Moran é pego em uma armadilha pelo agente Cream, que percebendo o potencial de Miracleman, decide voltar-se contra o governo e libertar Moran, que concorda em confiar em Cream, pois ele sabe sobre a organização governamental secreta Show Fantasma e o Projeto Zarathustra, que segundo Cream, possui arquivos sobre Miracleman e seu estranho passado.
Nesse capítulo Moore mostra seu talento para ficção-científica e sua genialidade em conseguir encaixar o passado fantasioso das aventuras ingênuas dos quadrinhos de Mick Anglo com a realidade pé-no-chão do seu Miracleman. É um daqueles momentos únicos em que você se pega intelectualmente emocionado com a criatividade de um autor e simplesmente pensa: “Puta que o pariu, esse cara é bom demais!”
A SÍNDROME DO REI VERMELHOEsse volume abre com o sequestro de Liz pelo Dr. Emil Gargunza, o cientista por trás do Projeto Zarathsutra. Sua intenção não é dominar o mundo, como era nas fantasias implantadas na mente de Miracleman, mas ganhar a imortalidade transferindo sua mente para o corpo do bebê de Liz e Miracleman e assim atingir a imortalidade em um corpo perfeito. O medo da decadência física e da morte é o que impulsiona os atos de Gargunza. E quem pode culpar ele por isso?
Descrito assim, a história parece igual a qualquer gibi de super-herói vagabundo por aí, mas a força com que Moore descreve as motivações e medos de seus personagens é algo que era inédito até então. E a narrativa tem muito de cinematográfica na estética de Moore e Davis.
Ao mesmo tempo, Moore nos brinda com um interlúdio do passado da Família Miracleman e Gargunza, ilustrada pelo traço solto de John Ridgway (HELLBLAZER), onde Miracleman luta com seu inconsciente para libertar-se da prisão mental imposta por Gargunza. O final, irônico, também explica uma das modificações que Moore adicionou ao personagem.
No capítulo seguinte, Moore dedica-se a contar a origem de Gargunza, um pobre menino latino-americano com QI de gênio e uma mente de sociopata que vai para a Europa e tem contato com filósofos como Heidegger a acaba trabalhando nos projetos de eugenia de Adolf Hitler. Ao fim de Segunda Guerra, é fato que muitos cientistas nazistas acabaram indo trabalhar para os EUA, A URSS e o Reino Unido. O programa Apollo que levou o homem à Lua foi capitaneado por Werner Von Braun, um dos cientistas responsáveis pelos mísseis V-2 de Hitler. Moore aproveita mais uma vez um fato histórico e coloca Gargunza para trabalhar com os militares britânicos e aproveitando a mitologia de Roswell, ele faz cair uma nave espacial na Inglaterra de 1947. E após anos de engenharia reversa, Gargunza finalmente cria super-humanos com base na tecnologia e na criatura morta que veio com a nave alienígena.
Miracleman e o agente Cream acham o esconderijo de Gargunza na região do Amazonas e o leitor se pergunta como, em um mundo aparentemente real, um velho e alguns capangas terão poder para deter um super-homem que uma bomba nuclear não foi capaz de deter? Com engenhosidade e uma grande sacada de Moore: se uma palavra mágica (pós-hipnótica) é o gatilho para a troca de corpos entre Mike Moran e Miracleman, porque não criar uma outra palavra pós-hipnótica que quando ouvida reverte a transformação em caso de emergência?!
E a outra divertida sacada de Moore é quando Gargunza explica para um Moran apavorado, que antes de testar a tecnologia alienígena em humanos, eles, obviamente, testaram em animais...
E Gargunza manda os dois homens fugirem antes de soltar o monstro com o debochado nome de Miraclecão, atrás deles.
E o bom de ler uma obra de Moore com tantas reviravoltas e desafios é saber que ele sempre vai resolver a trama de modo esperto e inteligente e é dessa forma que Moran escapa de ser morto pelo monstro e retorna a ser Miracleman. Nesse momento ele tem seu encontro com 3 capangas de Gargunza, ex-nazistas, e um deles fica feliz com que Miracleman tenha escapado, pois ele é o exemplo supremo da raça ariana da qual seu Furher tanto falava. A situação limite a que Moran foi imposto resulta na violência impiedosa com que Miracleman elimina os capangas de Gargunza mostra que o super-homem de Moore agora começa sua ascenção para além do Bem e do Mal.
E finalmente Miracleman encontra seu criador cara à cara, leva-o até os confins da atmosfera, beija-o na boca em despedida (cena provavelmente inspirada por BLADE RUNNER) e o joga contra a Terra. A reflexão filosófica de Miracleman nesse ponto dá o tom do que está por vir.
O capítulo seguinte é um interlúdio criado apenas para dar tempo para Moore e Rick Veitch (MONSTRO DO PANTÂNO, THE ONE) conseguirem finalizar (e provavelmente negociar com os editores) o polêmico nº 9. Assim, a edição 8 foi recheada de antigas histórias de Mick Anglo. Uma das editoras é usada como personagem entre elas para entreter o leitor enquanto ele aguarda pela retomada de Moore e Veitch. Metalingüística aplicada.
E o número 9 chega com uma advertência na capa. E por causa dela , mesmo plastificada, muitas bancas se recusaram a vender a revista nos EUA. Porque lá a crença cristã deles permite que crianças e adolescentes possam ver um homem explodindo a cara de outro homem com um tiro e está tudo bem, mas é o Inferno na Terra se uma criança ou adolescente vê um orgão sexual em uma revista em quadrinhos ou em um filme. E Moore e Veitch resolveram que nesse número eles mostrariam o parto de Winter, a filha de Miracleman e Liz, da mesma forma que você veria se tivesse que fazer um. Em uma bela homenagem ao mistério da Vida, Miracleman tece reflexões filosóficas sobre toda a trajetória de sua existência e as motivações de Gargunza. Para as ilustrações, Veitch disse que comprou um livro médico sobre parto e basicamente usou várias delas como modelo para as cenas. Bem, como todo parto humano, não é nada estéticamente belo aos olhos, mas é verdadeiro e ousado e isso é o que conta. E claro, o bebê não é um bebê comum...
Gargunza está morto, mas ele era apenas a ponta da lança que Moore prepara para o leitor. Um estranho casal de preto começa a investigar o paradeiro de Bates, Miracleman e de uma mulher misteriosa. Enquanto isso, o stress dos últimos acontecimentos e o estranho comportamento de Winter começam a cobrar sua dívida com Liz, que parece à beira de um colapso nervoso. E mais uma vez, o escritor Moore nos entretém com sua estílistica, dando ao casal de preto uma linguagem rebuscada e diferenciada, evidenciando sua origem celestial.
OLYMPUSO último livro da saga de Moore inicia vários anos depois da última edição, com Miracleman vagando por um palácio de proporções titânicas, onde durante todas as edições, ele visitará e comentará as maravilhas que ele contém: exercícios de futurismo, ficção-científica e filosofia de Moore. Uma espécie de “Museu de Babel” em quadrinhos. Mas enquanto flutua em sua morada divina, Miracleman divaga e reflete sobre o passado e em um livro de aço ele escreve suas recordações dos dias antes dos deuses...
E para o deleite dos leitores, John Totleben assume as ilustrações até o final deste volume, impactando-nos com imagens tão belas quanto grotescas.
A narrativa em flashback começa com o jovem Johnny, agora abandonado em um orfanato e sofrendo nas mãos de outros garotos e ainda lutando contra o monstro dentro de sua mente infantil. Enquanto isso, Moran deixa sua esposa e filha em casa, sendo seguido pelo casal de preto.
Moran troca para sua identidade de Miracleman para confrontar seus perseguidores e para sua surpresa, eles também trocam de corpos, mas corpos alienígenas, monstruosos e mais poderosos que Miracleman. Ao descobrirem que Miracleman possui uma filha, um deles imediatamente parte atrás da criança o que faz com que Miraclewoman saia das sombras para ajudar Liz e o bebê. A partir desse volume, Moore e seus personagens não mais se tratam como ou acham que são super-heróis, mas eles começam a perceber a verdadeira extensão de seus poderes e passam a denominar-se deuses. E Moore e Totleben esforçam-se ao máximo para que a diferença de comportamento, idéias e corpos seja notadamente diferente dos humanos comuns. Na narrativa, Miraclewoman é o agente que inicia o processo mental de humano para divindade em Miracleman.
Derrotados os aliens, Miraclewoman revela sua origem secreta para Miracleman e Liz. Criada secretamente por Gargunza, juntamente com Young Nastyman, ambos faziam parte de um plano secreto para procriação com o objetivo de atingir a imortalidade. Mas enquanto Gargunza fazia sua lavagem cerebral nos dois corpos adormecidos, ele mesmo tentava engravidar uma Miraclewoman inconsciente. Mais uma vez Moore choca o leitor contrapondo os quadrinhos de heróis com suas fantasias veladas de sexualidade com a realidade nua e crua de um estupro perpetrado pelo vilão. E como mulheres amadurecem mais rápido do que os homens, assim foi com Miraclewoman, que percebeu-se deusa já nos anos 60. E como muitas de suas colegas mitológicas, optou por permanecer longe do mundo dos homens. A edição 12 encerra com MM e MW sendo levados pelos aliens para descobrirem sobre suas origens. E o pequeno Johnny segue sendo espancado no orfanato...
Levados para um mundo alienígena, MM e MW descobrem que os Qys são uma raça que troca de corpos como nós trocamos de roupas e os Warpsmiths são seus inimigos em uma Guerra Fria milenar. Mas ambas as raças concordam em tornar o planeta neutro depois que MW propõe ao seu líder que ao invés de guerrearem pelo planeta o usem para fazer sexo. Afinal, um motel planetário é muito mais vantajoso para todos do que mais um campo de batalha. Apesar de soar engraçado, a idéia de que o sexo pode resolver conflitos é conhecida por qualquer casal que após uma briga transa loucamente e fica em paz. Na literatura, a peça LISÍSTRATA, de Aristófanes (escrita 411 A.C.), brinca com a idéia das mulheres gregas fazendo uma greve de sexo para acabar com a Guerra do Peloponeso. E na natureza, a sociedade matriarcal dos macacos Bonomo, resolve seus conflitos usando e abusando do sexo. E nós humanos ainda nos consideramos mais inteligentes que esses macacos... Mas de volta ao universo de Moore, é graças ao nascimento de Winter, a primeira super-humana nativa a nascer no planeta Terra, que Qys e Warpsmiths passam a considerar a Terra um mundo inteligente. E que finalmente pode sair da categoria de mundo habitado por meros animais selvagens. Essa edição prima por trabalhar conceitos de FC hardcore, filosofia, sexo, paternidade e civilização aplicados aos super-heróis. A única outra obra que abordou tantos temas juntos com a mesma inteligência e sagacidade foi WATCHMEN, do próprio Moore. E não deixa de ser divertido notar que enquanto estão no planeta dos Qys, MM tem seus pés no chão o tempo todo, enquanto MW permanece flutuando sempre, evidenciando sua aceitação como ser superior e divino.
Na edição seguinte, Liz, confusa e deprimida com tudo o que está acontecendo, decide ficar longe de MM e Winter. Winter, com poucos meses de vida, aproveita a oportunidade para ter uma conversa franca com seu pai, pára em pouco tempo partir para o mundo dos Qys em busca de um conhecimento que seu pai não é capaz de lhe dar.
E em uma seqüência triste e silenciosa, Moore e Totleben mostram um Mike Moran destituído de sua famíla, desistindo de sua vida e afetos humanos. O confronto entre o homem e o super-homem era inevitável e seu desfecho realista vai contra todos os outros desfechos do tipo apresentados nos demais quadrinhos de super-heróis, que sempre optam pelo humano sobre o divino (Superman sempre prefere ser Clark Kent e não o contrário).
No final da edição, a violência contra a criança Bates chega ao limite em uma angustiante cena de estupro onde em desespero, a criança diz a palavra que liberta um deus enlouquecido sobre o mundo dos homens.
Em Nemêsis, Bates está a solta sobre Londres e ao contrário de vilões de mentalidade adolescente, ele não faz ameaças ou reféns na tentativa de fazer Miracleman aparecer para enfrentá-lo. Em uma demonstração clara de seu poder e psicose, ele tortura e esquarteja dezenas de milhares de crianças, homens e mulheres. O horror e a violência gráfica das ilustrações Totleben nessa edição de MIRACLEMAN encontram comparações imediatas nas pinturas de Bosch sobre o Inferno e em ilustrações medievais mostrando pessoas sendo torturadas. Tenho sinceras dúvidas de que nesses tempos vergonhosos do politicamente correto, uma edição dessas teria sido publicada sem censura.
Em um tom poético em primeira pessoa, Miracleman relembra do dia terrível em que a humanidade descobriu que os deuses existiam e que eles podiam ser ainda mais cruéis que o deus do velho testamento. A narração é um complemento ao que a arte não reproduz e vice-versa, em uma perfeita simbiose da arte seqüencial, onde nada é redundante e toda palavra e traço acrescentam.
Miracleman, Miraclewoman, os Warpsmith e o Firedrake confrontam Bates em uma batalha onde metade de Londres é destruída e centenas de civis vão sendo mortos no fogo cruzado entre os deuses. E como em todas as obras super-heróicas de Moore, o herói deve, ao final, cometer um sacrifício físico ou moral para atingir seu objetivo.
E como numa guerra real, ninguém ganha, todos perdem.
No desfecho da edição, dois anos após o confronto, Miracleman faz uma última reflexão histórica sobre uma Londres arruinada e coberta de ossos; a de que não existe civilização, ideologia ou religião que não tenha sido erguida sobre ossos humanos.
Nesse ínterim, uma edição da WARRIOR traz uma história curta de MIRACLEMAN que revela uma seqüência esclarecedora de um único quadro de Nêmesis. Moore escreve e três ilustradores dividem a arte em capítulos curtos. E Garry Leach volta a ilustrar Moore em um história breve sobre a eterna batalha dos Warpsmiths contra os Qys.
E no último capítulo, Olympus, completamente anti-climático em termos de quadrinhos de super-heróis, mas completamente necessário a tudo o que vinha sendo construído até o momento, Moore continua com as reminiscências de Miracleman sobre o passado, quando Bates destruiu Londres e o mundo inteiro ficou sabendo da existência de super-heróis e extraterrestres.
Nessa edição não há batalhas apocalípticas, pelo contrário, há atitudes.
Miracleman e seus aliados decidem que devem fazer aquilo que nenhum super-herói de ficção jamais teve coragem de fazer: mudar o mundo.
Moore então, aplica aqui todas as idéias libertárias e radicais já sugeridas e publicadas por milhares de intelectuais, sociólogos e humanistas desse planeta. Lembra a música “Imagine” de John Lennon? Quase isso, porque afinal, não existe perfeição e só 4 anos se passaram desde Bates e a humanidade ainda não assimilou completamente a existência de deuses na Terra e muitos são incapazes de aceitar o admirável mundo novo imposto por Miracleman e seus aliados.
Bates agora tem seguidores, aquele tipo de gente que idolatra serial killers e fundamentalistas cristãos e islâmicos, cujas diferenças nunca foram muito grandes, se juntam contra os deuses criados pela ciência.
Com seus cérebros evoluídos e o know-how de raças extraterrestres, o dinheiro é extinto, as drogas são legalizadas, o crime acaba, os governantes são destituídos, a maioria das doenças é curada, o meio ambiente é reparado e a arte, o sexo e a ciência se tornam livres de toda censura.
Tudo passa a ser permitido, nada será proibido.
Ao final do volume, Alan Moore firma definitivamente seu nome como um dos melhores escritores de quadrinhos do século XX, com sua saga do homem que se torna um deus. Mais tarde ele voltaria a essa temática em WATCHMEN, trabalho que a maioria dos críticos e leitores consideram sua obra-prima. Entretanto, eu discordo e acho que Moore possui várias obras-primas, sendo MIRACLEMAN a primeira delas.
Depois de Olympus, Moore encerrou seu trabalho com MIRACLEMAN e passou o bastão para seu “afilhado” Neil Gaiman. E na segunda parte deste texto, pretendo analisar o último volume da saga de MIRACLEMAN - A ERA DE OURO, escrita por ele.
Kimota!